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Com o objetivo de compreender o processo de envelhecimento em situação de rua, realizei um estudo de mestrado pela Escola de Enfermagem da UFMG que mostrou um pouco da realidade de alguns idosos que vivem nas ruas de Belo Horizonte. Trabalhei em um setor da saúde que atende esta população e percebi que este público era pouco mencionado na literatura, o que motivou a minha busca por informações acerca destes idosos.





Percebi ainda que os idosos em situação de rua são tratados como público em geral que vive nas ruas e alguns aspectos das políticas públicas são considerados, mas a maioria não. Prova disso é que os idosos entrevistados vivem prioritariamente do auxílio do Bolsa Família, e apenas 21,3% da população entrevistada recebe aposentadoria ou o BPC. Além disso, faltam políticas que apoiem estas pessoas na rua e as discussões acerca do aumento destes idosos na rua é incipiente. O último censo realizado na capital mostra que apenas 70 idosos estão nas ruas mas a pesquisadora relata que este número é muito maior.


Defendi a pesquisa em junho de 2020 e ressalto a avaliação e contribuições da médica Geriatra Karla Giacomin, pesquisadora da Fiocruz que defende a garantia dos direitos da população idosa e contribui de forma primordial para a análise das políticas públicas existentes. “Percebemos que novos desafios estão surgindo decorrentes da transição demográfica, do aumento da longevidade, da incidência de doenças não transmissíveis e da mudança na família. O número de idosos em situação de rua cresce substancialmente e a universalização dos direitos fundamentais para esta população não acompanha este crescimento”, conclui Giacomin.


Acompanhei e observou a rotina de 14 idosos em situação de rua, que vivem na região centro-sul de Belo Horizonte, todos com idade entre 60 e 75 anos. As informações coletadas foram estruturadas em três categorias analíticas: a invisibilidade social do envelhecimento em situação de rua, o processo de transição vivenciado na rua e os desafios no cuidado a idosos em situação de rua. Destaco que a fragilidade dos idosos em situação de rua é muitas vezes suficiente para separá-los da sociedade, tornando-os menos sociáveis e com sentimentos menos calorosos.


Aline Figueiredo Camargo é enfermeira, Mestre em Enfermagem pela UFMG

A maioria da população em situação de rua concentra-se nas grandes metrópoles brasileiras e é caracterizada pela situação de vulnerabilidade social e de pobreza extrema.


São pessoas para as quais algumas das instituições básicas da sociedade – propriedade privada, família, mercado – deixaram de propiciar as estratégias usuais de sobrevivência. A trajetória de vida que as levou às ruas desenha, na maioria das vezes, uma sequência de fatos tais como fracassos pessoais e violências institucional e familiar. Se a exclusão e o desamparo as igualam frente aos olhares da sociedade, de uma forma geral, alguns fatores as diferenciam tais como os motivos que as levaram para a rua, o tempo de permanência nela, o grau de vínculos familiares existentes e questões singulares que sequer são capturadas nas várias pesquisas existentes.

A rua não é um local digno de vida. As visões mais comuns reproduzidas nos discursos das pessoas em situação de rua entrevistadas por Costa (2007) são as de que a rua é insalubre, que é um espaço de abandono, anonimato, violência e proliferação de doenças. O retrato torna-se mais drástico quando se pensa no idoso morador de rua. Nas ruas, a velhice tem implicado em uma série de infortúnios, incluindo a exposição à violência e à criminalidade, morbidade, acesso precário a serviços sociais e de saúde e baixa expectativa de vida. (SCHRÖDER-BUTTERFILL E MARIANTI apud SILVA E GUTIERREZ ,2013).


O envelhecimento populacional é um fenômeno observado de forma geral. No Brasil, o número de pessoas com sessenta anos ou mais passou de 3 milhões em 1960, para 7 milhões em 1975 e 14 milhões em 2002. Em 2020, as estimativas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apontam para um total de 30,2 milhões de pessoas nessa faixa etária (14,3% da população total). Estima-se que no Brasil 101.854 pessoas vivem na rua, conforme dados do IPEA de outubro/2016. O Terceiro Censo de População em Situação de Rua de Belo Horizonte, realizado em 2013, identificou 1.827

pessoas em situação de rua no município de Belo Horizonte das quais 9,9% tinham mais de 55 anos. Segundo Mattos e Ferreira (2005), mesmo com poucos dados acerca da população em situação de rua, estes apontam para um aumento no número de idosos nas ruas. Os autores destacam duas possibilidades para essa situação: o povo de rua está envelhecendo sem encontrar alternativas para reverter a sua situação ou o conjunto de vulnerabilidades prementes à população idosa tem fomentado o processo de rualização. O aumento da população idosa torna imprescindível a necessidade de pesquisas voltadas para essa fase do desenvolvimento humano, com o intuito de favorecer a melhoria das condições de vida dessas pessoas, visando o seu bem-estar, autonomia e a redução das desigualdades sociais.


A pesquisa “Envelhe-Ser na rua: significados, atitudes e modos de vida de pessoas envelhecentes e idosas em situação de rua”, realizada em 2016, trata da escuta dos significados atribuídos por estas pessoas ao envelhecer na rua, e da observação das suas atitudes e modos de vida na cidade de Belo Horizonte. A atividade investigativa foi de abordagem qualitativa do tipo descritivo e exploratório, com 20 indivíduos acima de 60 anos, acerca da velhice em situação de rua. Entre abril e julho de 2016, semanalmente, foram realizadas dinâmicas de grupo, rodas de conversa e entrevistas individuais semiestruturadas tanto na Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, quanto na Casa Aliança. A amostra contou apenas com indivíduos do sexo masculino pelo fato de serem maioria da população em situação de rua.


Os resultados da pesquisa dizem sobre as formas como a população em situação de rua identifica, estrutura, interpreta e explica suas práticas de enfrentamento do cotidiano. Aqui será retratado um recorte com os dados levantados sobre o significado de envelhecer na rua e sobre a saúde.


O que é envelhecer na rua?


A condição de vulnerabilidade aparece nos discursos dos entrevistados, que retratam eventos de violência e sensação de incertezas e inseguranças vivenciadas na rua.

Viver nas ruas quase sempre significa estar em risco. Risco que se transforma em medo cotidiano de ter os pertences roubados, de ser agredido por alguém entre os iguais da rua em alguma briga por espaço ou em uma desavença, de ser alvo de agressões inesperadas vindas de setores preconceituosos da sociedade para com esse público, ou mesmo dos órgãos oficiais responsáveis pela segurança.


“minha cabeça é jovem.”


“envelhecendo na rua é pior, só que o sofrimento de rua é pior, porque tem que ficar escondendo as suas coisas, qualquer hora pode ser roubado, o risco é maior, na sua casa é melhor, está tranquilo.”


“pegando drogas, o dia todo tem uns que não valem nada, uns vagabundos, e por isso que os velhos estão ficando.”


“caídos debaixo da marquise, não tem família. Não tem ninguém para ajudar, dá dó. Envelhecer na rua é coisa horrível. A gente dorme mal, não alimenta bem, não toma banho, não dorme sossegado, frio, sono, a gente fica doente.


“É muito triste, é muito, é muito triste!”


Como relatam sobre a saúde?


Grande parte da produção científica associa o processo saúde-doença das pessoas em situação de rua a dermatites, a helmintoses e aos sofrimentos

psíquicos, ou seja, limita a compreensão do processo saúde-doença às questões biológicas/ patológicas e, em alguns casos, associa-o a um fator social, em geral, relativo ao estilo de vida. A forma de pensar e produzir serviços de saúde, modelo multicausal, não tem conseguido resolver os problemas da população brasileira e muito menos da população em situação de rua. As pessoas que vivem nas ruas dificilmente conseguem adequar-se às exigências dos tratamentos médicos, por exemplo; por isso, muitas vezes, padecem de doenças que em outras circunstâncias menos adversas teriam possibilidade de tratamento.


Paiva (2016) comenta que as concepções de saúde para a pessoas em situação de rua estão associadas à capacidade de estar vivo e de resistir ao cotidiano de dificuldades nas ruas, já a doença foi associada ao estado de debilidade a ponto de não poder trabalhar, à impossibilidade de batalhar e ganhar dinheiro, ao impedimento de realizar tarefas simples ou, no caso extremo, ao organismo não suportar o sofrimento, enfraquecer e sucumbir. Os significados de saúde e doença para as pessoas em situação de rua são diversificados: não há conceitos melhores ou piores, e, sim, que fazem sentido para o que os indivíduos estão vivenciando. Alguns fazem associação de saúde com ausência de doença. Outros remetem a saúde às condições enfrentadas pela sobrevivência na rua: exposição ao frio, tabagismo, alcoolismo e drogadição.


Pode-se dizer que o maior problema na área da saúde que atinge essa população está no campo das doenças mentais. Contata-se a falta de equipamentos públicos como banheiros e as violências praticadas entre os próprios moradores e de outros setores como uma contribuição para a diminuição da autoestima do idoso em situação de rua. Compõem esse quadro a dependência de substancias psicoativas e as neuroses e psicoses, de tal modo que a grande maioria de pessoas que vivem nas ruas tem algum tipo de sofrimento psíquico. O uso abusivo de bebidas alcoólicas incorpora-se a esse modo de vida, pois é, ao mesmo tempo, forma de aquecimento e embotamento emocional e também atua como fator de aproximação interpessoal.


“Fiquei dois anos na cadeira de rodas, quatro meses usando fraldas, mas vim

para a rua a procura de local que me acolhesse.”


“Estou precisando de ajuda...caio muito e preciso de alguém para me ajudar. Já caí até da cama.”


“A cabeça não grava mais nada,

porque é cheia de problemas.”


“Em depressão, você acaba fazendo besteira. A depressão faz a pessoa chegar à loucura, faz a pessoa não sei para onde, faz a pessoa suicidar, é não é? Faz a pessoa encher a cara, aí vai, é só morrer.”


Conclusões

Os idosos que vivem na e da rua buscam ou se mantêm nesse espaço cada vez mais sustentados por fatores sociais, políticos e econômicos e por não terem seus direitos garantidos.


A inacessibilidade a direitos fundamentais e a deficiência de políticas públicas de moradia, educação, assistência e seguridade, e, na maioria das vezes mínimo suporte social específico como: ausência de banheiros públicos e locais para higiene nas ruas, e locais para se alimentarem, são expostas nas demandas explícitas e na luta cotidiana das pessoas idosas entrevistadas.


A rua se apresenta num duplo espaço de liberdade e de busca de reconhecimento, e de novos modos de agrupar, construir solidariedade que não pelos valores vigentes. Ao mesmo tempo, por ser um lugar de contraposição ao sistema paternalista, é também um lugar de dor, de escárnio, preconceito exclusão na sociedade atual somando os estigmas da velhice, da pobreza e de ser da rua.


Referências:


ARCE, A. et al. A psychiatric profile of street people admitted to an emergency shelter. Hospital and Community Psychiatry, V.34, N.9, p. 812-817.1983.


BRETAS et al, 2009). BRÊTAS, A.C.P. et al. Quem mandou ficar velho e morar na rua? Ver da Esc de enfermagem SP, V.44, N.2, 2010.


COSTA, Daniel. 2007. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.


MATTOS RM, FERREIRA RF. Quem vocês pensam que (elas) são? - Representações sobre as pessoas em situação de rua. Psicol. Soc. V. 16, N.2,p.47-58.maio-agosto2004


MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Saúde da população em situação de rua : um direito humano / Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Departamento de Apoio à Gestão Participativa. – Brasília : Ministério da Saúde, 2014. 38p. : il. ISBN 978-85-334-2201-8 1. Atenção à Saúde. 2. População em Situação de Rua. 3. Equidade em Saúde Social. I. Título.


PAIVA ,Irismar Karla Sarmento de. Direito à saúde da população em situação de rua: reflexões sobre a problemática. Ciência e Saúde Coletiva. V.21, N.8, p.2595-2606, 2016


PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE (Minas Gerais). Terceiro Censo de População em Situação de Rua e Migrantes de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte/Centro Regional de Referência em Drogas; 2011.

Há alguns anos, conheci o trabalho desenvolvido pela Pastoral do Povo de Rua, ligada à Arquidiocese de Belo Horizonte. Na sequência, fui convidado para encontros de formação e/ou assessoria com integrantes dessa população em atividades promovidas pela Pastoral e pelo Centro Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis de Minas Gerais.


Devo confessar que a cada encontro ou reunião entrava como professor convidado e saía como um aluno inebriado por tanto aprendizado que absorvia a partir das intervenções, depoimentos, análises e testemunhos dos moradores de rua e da equipe técnica que atuam nessas verdadeiras escolas de cidadania e de vida.






À medida que conhecia um pouco da história desse segmento tão segregado e estigmatizado da sociedade pude perceber que daquilo que é considerado lixo brotam verdadeiras árvores de sabedoria, resistência e luta: trata-se da potência que nasce da união, da troca de saberes e do engajamento sociopolítico dos moradores de rua e das equipes dessas instituições que com eles atuam e transformam a vida desses sujeitos e a vida na cidade.


Entre os muitos aprendizados, alguns me marcam profundamente: as múltiplas formas de engajamento que resultaram em saídas objetivas para o drama da exclusão, como, por exemplo, a elaboração e implantação da política nacional para a população em situação de rua (Decreto 7.053 de 23/12/2009) que nasceu das bases dessas instituições, com a participação ativa dos moradores em situação de rua na condição de sujeitos ativos nos processos de elaboração, implementação, monitoramento e avaliação dessa política pública. Trata-se de engajamento/conhecimento com a temática e ação política que quebram preconceitos e lançam por terra a visão preconceituosa segundo a qual essa população é formada por vagabundos incultos.


Outro aprendizado, a cada encontro com integrantes dessas instâncias, se dá na educação política e à cidadania. Como professor universitário, faço questão que meus alunos, a cada ano, desenvolvam uma pesquisa-ação com integrantes da Pastoral ou do Centro no sentido de aprenderem, na teoria e na prática, o que é, de fato, o exercício ativo da cidadania. E a cada experiência dessa relação entre Universidade e população em situação de rua nasce o encantamento que se dá na troca de saberes e na produção de novos olhares sobre realidades que são invisibilizadas e criminalizadas pela nossa sociedade.


Neste breve testemunho, agradeço a Pastoral, ao CEDDH, a Cristina, Claudenice, Samuel... e a tantas e tantos que me ensinam grandes e duradouras lições: apesar de toda violência, segregação, discriminação, xenofobia... os moradores de rua são cidadãos muito mais plenos, capacitados e íntegros que boa parte dos ditos “homens e mulheres de bem” da nossa sociedade.


Robson Sávio Reis Souza é presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos de MG; membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Belo Horizonte e coordenador do Núcleo de Estudos Sociopolíticos da PUC Minas.



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