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Perder tudo.

Se fossemos viajantes em mundos distantes e chegássemos em um planeta onde pessoas que sentem, tivessem perdido tudo, menos os seus sentidos e a sua capacidade de sentir.


Pessoas que perderam a família, o endereço, a identidade, o trabalho, mas não perderam a capacidade de amar, sofrer, chorar e rir, pessoas que ainda podem sonhar, desejar, sentir o cheiro e o paladar. Mas essas pessoas perderam tudo. Elas moram em um planeta chamado “rua”. Tão longe e tão perto, os viajantes por planetas diversos, apenas observam aquelas pessoas que perderam tudo, mas que continuam tendo o que mais importa, os seus sentidos, e entre esses, o sentido do amor. Essas pessoas do planeta chamado “rua” sentem o cheiro da rua, comem restos da rua. É o que está ao alcance do paladar e do olfato das pessoas do planeta “rua”.



Para chegar ao planeta “rua” basta, para os viajantes, descerem pelo elevador e dar alguns passos, caminhar um pouco ou descer escadas, ou para os viajantes que moram em condomínios mais distantes, dirigir suas sofisticadas naves automóveis que logo chegarão ao planeta “rua”. Muitos, ou quase todos viajantes, usam o planeta “rua” só de passagem. Como se fossem viajantes de um pacote de viajem, apenas olham de fora, observam, mas não há tempo de parar e sentir o que sentem os habitantes do planeta “rua”. Afinal, há tantos lugares para “ver” que não dá pra parar e sentir como é a vida naquele planeta malcheiroso.


Como seria para esses viajantes de um “bem-estar” tão distante e um “lugar” tão próximo, experimentar o alimento daquele estranho planeta? Dormir no chão duro, poder sentir o frio e a água da chuva enquanto dorme; o cheiro de urina e de merda. Conhecer os estranhos animais que habitam o planeta “rua”. A diversa fauna do planeta rua é basicamente constituída de “insectóides”, de roedores e cachorros mal alimentados. Gatos também. Não são perigosos, senão pela sujeira e logo as doenças que daí decorrem. As agencias de viajem deveriam vender pacotes para que os viajantes pudessem desfrutar de seis noites com alimentação e safari incluídos para conhecer e experimentar o planeta “rua”.


Neste planeta tão longe e tão perto, são alguns minutos de viagem, mas uma imensidão desértica para vivenciá-lo, o pacote poderia vir acompanhado de experiencias emocionantes. Entre essas experiencias, os viajantes poderiam desfrutar da constante intimidação policial; perder seus bens para os agentes do estado, bens quase inexistentes e sem algum valor para qualquer outra pessoa; serem importunados, agredidos e às vezes até queimados pelas pessoas “de bem”, bem vestidas, que não suportam o odor do planeta. Sem dúvida uma experiencia que poderia mudar a percepção, que os viajantes têm, dos habitantes do planeta “rua”.


Esses habitantes nasceram como nós, são da mesma espécie, sentem, têm paladar e olfato; desejam; sonham; amam; mas foram condenados a viver em um outro lugar, muito próximo, mas em um “estado de mal-estar” muito, muito distante, quase inimaginável para os viajantes, que simplesmente passam, pelo planeta “rua”.


O que fazer?


José Luiz Quadros de Magalhães

Como a pandemia está afetando a população em situação de rua.




A pandemia trouxe necessidades e demandas urgentes para a população de rua, pois se encontra numa situação de extrema vulnerabilidade, desprotegida de tudo, ao relento, nas ruas.


Isso exigiu e esta exigindo uma mobilização de atores da sociedade para atender este público de imediato e na busca de políticas públicas que visem a superação desse grave e complexo problema social.



Padre Júlio César Gonçalves, Amaral, Vigário Episcopal do Setor Social do Veaspam







Como você considera o impacto do fechamento da cidade para quem vive em situação de rua?


A pergunta em si já é interessante, porque, se formos olhar bem, as cidades já vivem fechadas para essas pessoas, que não são vistas nem consideradas cidadãs, seja por parte da população, como também pelos governantes de um modo geral. Elas vivem na cidade, mas é como se não fossem seus habitantes, ou como se não tivessem o direito de existir ou de estarem ali, pela sua condição de miserabilidade, que choca e incomoda quem se dá ao trabalho de olhar. Despertam caridade em parte das pessoas, mas não solidariedade. O olhar sobre elas é a primeira das muitas violências que sofrem todos os dias, pois é um olhar de indiferença, de desprezo, até de raiva. Mas elas sobrevivem, quando conseguem, e continuam ali, porque nada estruturante é feito para mudar sua realidade.



Chegando ao ponto da pandemia, é importante registrar que elas foram provavelmente as mais impactadas pelo fechamento “oficial” da cidade. Em primeiro lugar, porque para muitas delas, a única fonte de subsistência eram as doações que recebiam nas ruas. De repente, já não havia os grupos com doações nos pontos conhecidos, e a fome passou a ser a primeira e mais urgente preocupação. Mas junto com esta preocupação, outras se somaram, numa espiral muito cruel.


Um segundo impacto, fator de insegurança e aflição, foi o fato de não saberem do que se tratava, que gerou uma aflição muito grande. O que está acontecendo? Por que está todo mundo sumindo? Não tem gente na rua, por que? Então, foi como se elas estivessem num outro plano , um plano diferente do que elas conheciam, sem estarem sido informadas, pois não têm acesso a TVs, celulares para saber o que tem acontecido e como se protegerem. Então, foi na verdade, um duplo impacto: o da perda das doações, e da solidão maior, se assim se pode falar, um isolamento ainda mais perigoso, pois suas vidas estavam expostas sem qualquer proteção. E como uma violência geralmente se desdobra em outras, além da fome e do desconhecimento, percebem que parte da população que circulava passou a olhar para elas não só com indiferença ou desprezo, mas com medo, como se fossem um fator a mais de perigo de contágio.


O terceiro tipo de impacto, muitíssimo grave, foi a perda do acesso aos serviços essenciais, a começar pela assistência social, com o fechamento dos CRAS, que privou as pessoas em situação de rua de acessarem seus direitos, na forma de benefícios, como o Bolsa Família, que lhes provia o mínimo existencial - e aqui o conceito de “mínimo” se aplica com toda precisão. Claro que, de uma forma geral, todas as pessoas mais carentes e vulnerabilizadas também sofreram e continuam sofrendo com a suspensão ou redução dos atendimentos, e não podemos minimizar esses impactos sobre suas vidas já tão sacrificadas. Mas precisamos atentar para o fato de que, no caso de pessoas em situação de rua, sem acesso a internet, a um celular e orientações para buscarem seu benefício, a suspensão desses serviços sem uma retaguarda eficiente tem sido catastrófica e desumana. O mesmo se deu no que diz respeito aos serviços de saúde, de saúde mental, com a suspensão dos serviços voltados para o tratamento de doenças como alcoolismo e dependência química, como os CAPS-AD, por exemplo. Muitas estavam em um processo de evolução do quadro da dependência, e subitamente, tudo foi interrompido, e a recaída e o desalento tomam conta desses indivíduos, mais sozinhos do que nunca.


O último tipo de impacto, certamente o mais fatal, é o fato de que seus corpos estavam e estão mais desprotegidos do que nunca diante de um vírus que se propaga pelo ar, e cuja única defesa é o isolamento dentro de uma casa, um imóvel, onde possam se alimentar e se cuidar. Sem uma política de moradia para pessoas em situação de grave vulnerabilidade, os abrigos e albergues passaram a ser a única opção ofertada pelo poder público. E sabemos que essas unidades, pelo modelo arquitetônico, pelo tamanho, pelo modo de funcionar, nunca foram adequadas a um atendimento digno e humanizado para pessoas em situação de gravíssima vulnerabilidade. O maior desafio estava e sempre esteve aqui. Deixá-las morrerem na rua seria no mínimo escandaloso, e mesmo um gestor inspirado por essa lógica mais negacionista e/ou perversa do governo federal, teria receio de sofrer as consequências no futuro.


Aqui cabe registrar o protagonismo dos movimentos sociais organizados e engajados na defesa dessas pessoas. Sem eles o número de mortes e outros danos físicos e psíquicos teria sido muito maior. Os projetos que surgiram para tentar responder aos muitos desafios vieram deles, das parcerias e trabalhos interinstitucionais inovadores e inéditos, como o Canto da Rua Emergencial, as casas de acolhimento com grupos pequenos formados por pessoas com elevado risco por comorbidades, têm contribuído para dar uma resposta a essas pessoas, à sociedade e ao poder público, de que todas as vidas importam. E que no caso das vidas mais vulnerabilizadas, atravessadas por múltiplas violências estruturais e violações de direitos, salvá-las ou protegê-las é uma questão ética, mas é também e principalmente um dever jurídico.


Egidia Maria de Almeida Aiexe, integra o Fórum de População de Rua-BH, o Fórum Nacional de População em Situação de Rua e compõe o inativo Comitê de Assessoramento para a Política Municipal/BH. Pesquisadora Extensionista do Programa Polos de Cidadania/UFMG.

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