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Pelo direito da mulher gestante em trajetória de vida nas ruas de ser mãe

Estava atendendo na enfermaria e ouvi um berro, parecia mais um urro de dor! Assustada, fui me informar o que se passava. E me responderam: - Não se preocupe, é apenas uma mãe que acaba de ter seu filho retirado para acolhimento institucional!
Relato de uma médica residente em pediatria

No mês de março são comemoradas em todo o mundo duas datas muito importantes: o Dia Internacional da Mulher, no dia oito, que celebra as conquistas no campo do direito das mulheres e denuncia as inúmeras violações a que ainda estão submetidas, e o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, no dia 21, data que reforça a importância da luta contra o preconceito racial.


Considerando as duas pautas, este texto vai discorrer sobre a situação desumana de retirada compulsória dos filhos recém-nascidos de mulheres negras e pobres impedidas de exercerem seu legítimo direito à maternidade em Belo Horizonte. Pretende-se também dar visibilidade para a Lei Estadual 23.780/21 sancionada em 07 de janeiro de 2021, que instituiu a política estadual às gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal, bem como a seus filhos, como forma importante de coibir práticas cruéis de acolhimento compulsório de bebês.




A desigualdade social, fruto principalmente das iniquidades étnico-raciais, são responsáveis por manter muitas mulheres e suas famílias aprisionadas em condições históricas e diversas de vulnerabilidade social, risco e ameaça. A vida da mulher negra que vive em situação de extrema vulnerabilidade vem sendo marcada por enormes desafios e fragilidades em todas as esferas dos direitos sociais.


Na condição de marginalizadas e sem os seus direitos à cidadania de fato reconhecidos, quase tudo é permitido contra elas, como uma licença sádica para todos os tipos possíveis de violências. Muitas vezes, a discriminação as faz passar de vítimas para culpadas, responsáveis pelas condições de vulnerabilidades por elas vivenciadas, acentuando ainda mais a exclusão moral, social e econômica, com repercussões cada vez mais deletérias em suas vidas, gerando dor, adoecimentos diversos e sofrimento psíquico.


Um exemplo de extrema crueldade da situação relatada acima é a retirada “preventiva” dos filhos recém-nascidos dessas mulheres ainda na maternidade, afastados de seu convívio pelo Sistema de Justiça, a partir de fundamentos discriminatórios, como uso abusivo de drogas e trajetória/situação de vida nas ruas. No lugar de acolhimento, amparo e cuidados provenientes das instituições de Saúde e Assistência Social, visando a redução das vulnerabilidades e a garantia do direito à convivência familiar, mantendo mães e bebês juntos, com vida digna, a mulher recebe a sentença de incapacidade para ser mãe pelo Estado, que vem atuando na direção de permitir e induzir a separação compulsória de seus filhos, arrancados de seus braços sem compaixão.


Em Belo Horizonte, essa situação foi muito intensificada a partir de 2014, com a publicação das Recomendações nº 5 e 6 da 23ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude Cível de Belo Horizonte, que determinavam, às maternidades públicas e unidades básicas de saúde, o direto encaminhamento dos casos de gestantes e puérperas usuárias de drogas à Vara da Infância e Juventude de Belo Horizonte (VCIJ-BH).

Essas determinações foram ainda endossadas, em 2016, com a expedição da Portaria nº 03 pela VCIJ-BH, que estipulava que profissionais de saúde e instituições hospitalares tinham o dever de encaminhar àquela Vara os casos em que houvessem constatações ou ponderadas evidências de que a criança recém-nascida estivesse em risco, em virtude de “dependência química ou trajetória de rua” de seus genitores, para que fossem tomadas as medidas cabíveis.


Essas normativas transformaram em regra a separação de bebês de suas mães, uma situação que deveria ser excepcional, ocorrendo apenas quando esgotadas todas as possibilidades de convivência com os pais ou a família extensa. Os bebês ficavam privados do aleitamento e do vínculo materno, com perdas nutricionais e emocionais, danos irreparáveis para mãe e filho(a).


Dada a justa reação de instituições, profissionais e entidades sociais, teve início uma grande mobilização com manifestações contrárias às duas normativas, com destaque para a participação da Coletiva em Apoio às Mães Órfãs, Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente/CONANDA, da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, Defensoria Pública da União em Minas Gerais, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Ministério da Saúde, dentre outros/as. Após essa mobilização, a Portaria foi suspensa pela Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, em 2017.


No entanto, as violações ainda persistem e angustiam as mulheres. De forma absolutamente danosa, as recomendações e a portaria interferiram na construção de vínculos entre as usuárias e profissionais/serviços de saúde e têm por efeito direto o afastamento das gestantes e de seus familiares dos serviços, inviabilizando propostas terapêuticas construídas com alicerce das relações de confiança, que só são possíveis quando se preserva o respeito ao sigilo e confidencialidade.


Esse temor se reflete, por exemplo, na demora em procurar serviços de saúde para início do pré-natal, ou até mesmo para o parto, pelo risco real de sofrerem constrangimentos, serem “delatadas” e criminalizadas por uma condição da qual são vítimas. Ao ouvir seus relatos, constatamos que a maioria vem de um ciclo de violência institucional desde a infância e, ao longo desse doloroso percurso, no lugar de acolhimento e cuidados, sofrem tratamentos desumanos, degradantes e opressores. Assim, a repetição desse ciclo se dá justamente nos momentos mais críticos, numa direção contrária aos pressupostos para um cuidado ético previstos do Sistema Único de Saúde (SUS).


No âmbito do SUS, a Rede de atenção integral ao parto e nascimento tem como princípios o respeito, a proteção e a realização dos direitos humanos; o respeito à diversidade cultural, étnica e racial; a promoção da equidade; o enfoque de gênero; a garantia dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos de mulheres, homens, jovens e adolescentes; a participação e a mobilização social. Considerando que o acesso à saúde é um direito universal, toda mulher gestante tem direito ao pré-natal, cujo início é recomendado o mais cedo possível, para que seja assegurada às mulheres a atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e, às crianças, o direito ao nascimento seguro, ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. Assim, a oferta do pré-natal é considerada uma prioridade nos serviços públicos de saúde e, por isso mesmo, pode ser ofertado imediatamente tão logo se identifica a gravidez. Considerando o princípio da equidade, as mulheres vivendo de forma precarizada, devem ser priorizadas com oferta de uma atenção pautada nos princípios do SUS e pressupostos das politicas de atenção à saúde da mulher e da criança


Ao contrário daqueles que não conhecem ou que não acreditam na potencialidade da Rede de atenção, existem caminhos para transformar esse quadro. Quando os serviços das políticas públicas básicas, como da Saúde e Assistência Social, identificam uma situação de vulnerabilidade, toda a intersetorialidade deve ser acionada para que seja construído um plano de cuidados em saúde e socioassistencial com amparo e garantia de oferta de condições dignas de vida para a mulher e sua família.


Um dos possíveis caminhos para a transformação da rede de apoio é a Lei Estadual 23.780/21, recentemente sancionada pelo Governo de Minas Gerais, que reforça a necessidade de transformar esse quadro. A Lei institui a Política Estadual de Atenção a Gestantes, Mães e Puérperas em situação de vulnerabilidade social e risco, bem como seus filhos[1]. A sanção desta política representa uma grande vitória dos movimentos que lutam pela garantia de atendimento integral, compartilhado e intersetorial nas redes de atenção à saúde e nos serviços socioassistenciais a esse público[2].


Na implementação da política de que trata esta lei, serão observadas as seguintes diretrizes (Art. 3º): garantia de atenção integral à saúde da mulher, incluindo a saúde sexual e reprodutiva e a saúde mental, bem como os cuidados necessários durante o pré-natal, o parto e o puerpério; desenvolvimento das ações da política de que trata esta lei de forma descentralizada e articulada com os municípios; identificação precoce de gestantes em situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal e sua vinculação oportuna aos serviços de saúde e assistência social nos territórios.


A nova lei reafirma o protagonismo dos serviços de saúde e socioassistenciais no acompanhamento de casos, bem como a necessidade de convocação dos Conselhos Tutelares como um ponto de articulação da rede de apoio, antes que a questão seja encaminhada ao Poder Judiciário (Art. 4º, II). Isso garante uma atenção robusta e compartilhada no âmbito das políticas públicas municipais, que atenda, por meio de escuta refinada e levantamento de necessidades, as demandas singulares da mulher e sua família para subsidiar a construção dos planos singulares de acompanhamento da saúde e socioassistencial individual e familiar


De fato, a lei corrobora com toda a lógica que permeia o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA foi elaborado no sentido de descentralizar a rede de apoio em torno do Poder Judiciário, justamente por reconhecer que os serviços socioassistenciais têm enorme potencial de garantir o acesso a direitos e, como consequência, auxiliar na superação das condições de vulnerabilidade e risco. Assim, ao Poder Judiciário são reservadas somente as demandas mais complexas, que exigem decisões submetidas ao contraditório e ampla defesa.


Um dos pontos que merece destaque na nova Lei é a necessidade de implementação de uma rede de apoio voltada especificamente para o acompanhamento de gestantes, puérperas e mães em situação de vulnerabilidade, em conjunto com seus filhos (Art 4º, III). Atualmente, na maioria das cidades mineiras, não existem serviços voltados a esse público específico, então as demandas acabam por se diluir entre vários pontos da rede, o que pode comprometer a adesão das famílias.


Ainda, a falta ou precariedade das condições habitacionais de muitas famílias também é um ponto central, pois têm sido apontadas como justificativa para a determinação do acolhimento institucional de seus filhos. No entanto, o direito à moradia, bem como o direito à maternidade e à infância, são direitos sociais reconhecidos pela Constituição de 1988. Assegurar uma moradia digna significa cumprir ou preservar o direito à convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes, bem como o pleno exercício da maternidade. A nova lei também indica possíveis caminhos para evitar o afastamento nesses casos, priorizando o acolhimento conjunto das mães e bebês em abrigos familiares (Art. 4º, IX).


A gravidade das violências sofridas pelas gestantes ou puérperas e seus filhos deixam marcas irreparáveis e expressam mais um lado perverso do racismo estrutural em nosso país. É imenso o desafio para reparar perdas tão profundas e urgente a necessidade de romper com a lógica discriminatória e excludente presentes nas ações segregativas da judicialização.

Por isso, convocamos todos os segmentos da sociedade para debater essa questão, reconhecer o racismo estrutural e institucional e garantir providências efetivas para a implementação da Lei Estadual 23.780/21. A luta continua!


Coletiva em Apoio às Mães Órfas*

*Grupo de defesa e promoção de direitos humanos, que visa a garantir, conjuntamente, a efetividade de direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de vulnerabilidade e os direitos de crianças e adolescentes que integram suas famílias. Seus objetivos são promover o debate público sobre o “acolhimento compulsório”.

[1] Para os efeitos desta lei, são consideradas em situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal as gestantes e puérperas, bem como seus filhos, que tenham sofrimento mental, façam uso prejudicial de álcool e outras drogas, vivenciam situação de violência ou tenham trajetória de vida nas ruas (art. 1ª, parágrafo único). [2] São princípios da política de que trata esta lei (Art. 2º): proteção, promoção e efetivação dos direitos humanos; garantia da convivência familiar e comunitária; universalidade do acesso a serviços de saúde e de assistência social; intersetorialidade, transversalidade e integração com as demais políticas públicas; participação e mobilização social.


Referências:


1. Streva, Juliana M. Teoria Descolonial de Frantz Fanon: Anti-racismo, novo humanismo e luta Article · University of Cologne December 2015. Disponivel em: https://www.researchgate.net/publication/326226221 (Acesso em 10 de março, 2021)

2. Portaria nº 1.459, de 24 de junho de 2011 Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS - a Rede Cegonha .Disponivel em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1459_24_06_2011.html (Acesso em 10 de março, 2021)

3. Portaria conjunta SMSA/SMASAC n.º 0001/2017.Estabelece diretrizes para a articulação e proteção social intersetorial e, institui Fluxograma de Atenção às Gestantes, Puérperas e Bebês em Situação de Vulnerabilidade e Risco Social e Pessoal. Disponível em: http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1187128 (Acesso em 16 de março, 2021)

4. Ferla, Alcindo Antônio; Jorge, Alzira; Merhy, Emerson. Separação compulsória de mães e seus filhos: quando a lei e a cidadania se confrontam. Revista Saúde em Redes, Editora Rede Unida, v.4, Suplemento 1 (2018). Disponível em: http://revista.redeunida.org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/view/1822 (Acesso em 16 de março, 2021)

5. Karmaluk, Clara; Lansky, Sônia; Parizzi, Márcia; Batista, Gláucia et al. De quem é esse bebê? Movimento social de oproteção do direito de mães e bebês juntos, com vida digna! Revista Saúde em Redes, Editora Rede Unida, v.4, Suplemento 1 (2018). Disponível em: http://revista.redeunida.org.br/ojs/index.php/rede-unida/article/view/923 (Acesso em 16 de março, 2021)

6. Lei Estadual 23.780/2. Institui a política estadual às gestantes e puérperas em situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal, bem como a seus filhos. Disponível em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=LEI&num=23780&comp=&ano=2021 (Acesso em 16 de março, 2021)

7. Blog De quem é este bebê? Por mais Saúde menos abrigamento em BH. Disponivel em: https://dequemeestebebe.wordpress.com/


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