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Políticas de informação e produção de dados para o enfrentamento do Racismo Estrutural e da pandemia

O fenômeno da população em situação de rua é uma cruel expressão do Racismo Estrutural historicamente presente no Brasil. Aproximadamente 70% das pessoas em situação de rua cadastradas no CADÚnico[1] se declaram negras, chegando esta porcentagem a 93% em alguns estados brasileiros, como a Bahia.


Foram séculos de estruturação de um complexo processo histórico, econômico, cultural e político de classificação, divisão, segregação, controle, comercialização e eliminação de existências, vidas e corpos negros em territórios diversos, que, definitivamente, todas(os) sabemos, não teve fim com a Abolição da Escravidão em 13 de maio de 1888.





Duramente descrito por Abdias Nascimento, em sua magnífica obra Genocídio do Negro Brasileiro[2], o tratamento dado aos negros escravizados, que sobreviviam aos horrores da exploração de seus corpos e não mais eram vistos como peças úteis na engrenagem produtiva, era despejá-los, atirá-los às ruas das vilas e cidades, “à própria sorte, qual lixo humano indesejável.” (NASCIMENTO, 2017, p. 79)


Dessa forma, a Abolição da Escravidão eximiu de responsabilidades o Estado, os comerciantes e proprietários de pessoas negras escravizadas, as instituições e a própria sociedade brasileira. Como se não bastasse a instalação de mais um capítulo do reformulado projeto Necropolítico[3] contra a população negra no nosso país, em 14 de dezembro de 1890, o então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, assinou um despacho, no qual ordenava a queima e destruição imediata de todos os documentos históricos e arquivos da época referentes à escravidão, como registros demográficos, estatísticos e financeiros.[4]


Não somente por conta desse criminoso apagamento da memória e história da escravidão no nosso país, o Racismo Estrutural ainda é mascarado, pouco conhecido e bastante falseado, invisibilizado e silenciado por setores conservadores e progressistas brasileiros, por vezes sendo cinicamente delimitado a uma pauta identitária, configurando-se, na realidade, como um pacto narcísico e perverso estabelecido entre a parcela minoritária e branca da nossa sociedade brasileira, incluindo parte da intelectualidade, visando à manutenção das suas inúmeras condições de privilégio e da ilusão de uma democracia racial.


Passados tantos anos, dada a importância histórica para a formação do Estado e da nossa sociedade, relativamente poucos dados têm sido produzidos e discutidos sobre o Racismo Estrutural no Brasil[5], sua estreita relação com complexos fenômenos vivenciados no país, como o da população em situação de rua, havendo um abismo enorme nos conhecimentos difundidos acerca da história da escravidão e das influências dos povos de África[6].


Como bem nos lembra o brilhante advogado e filósofo Silvio Luiz de Almeida, em seu excelente livro Racismo Estrutural[7], o racismo não deve ser considerado, tampouco simplesmente compreendido, de maneira uniforme e meramente conceitual. É necessária a imersão e uma análise cuidadosa e atenta sobre seus distintos processos constitutivos e mantenedores.


Quais as circunstâncias específicas de constituição do fenômeno da população em situação de rua, enquanto expressão do Racismo Estrutural, nas diversas regiões, estados e municípios no nosso país? Quais os modos de resistência instaurados frente às violências praticadas? Como tais violências e modos de resistência são subjetivamente, tanto no âmbito individual quanto coletivo, desenvolvidos, fortalecidos e/ou enfraquecidos? Quais as bases de dados disponíveis para consultas, geração de saberes e disseminação de informações? Como garantir a centralidade, a autonomia e o protagonismo das pessoas em situação de rua na elaboração, na implantação, no monitoramento e na avaliação de políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988?


Acredito que essas sejam algumas importantes perguntas que deveriam ser coletivizadas, compartilhadas, intensificadas, amplificadas e amplamente debatidas em instituições, espaços públicos e comuns nas nossas cidades, contando com ampla participação das pessoas em situação de rua, coletivos, entidades e movimentos de luta democrática, tendo por objetivo a formulação e aplicação de efetivas, sistemáticas e constantes práticas e políticas antirracistas.


A partir de problematizações como essas e outras, o Polos de Cidadania, programa transdisciplinar e interinstitucional de extensão, ensino e pesquisa social aplicada da UFMG criou o projeto INCONTÁVEIS, vinculado à sua Plataforma Aberta de Atenção em Direitos Humanos (PADHu/POLOS-UFMG), que está sempre em diálogo próximo com pessoas em situação de rua, mulheres e famílias em condições históricas racistas de vulnerabilização social e em risco quanto às suas maternagens.


Além da ausência de um Censo Nacional com as pessoas em situação de rua no Brasil, faltam dados confiáveis, acessíveis e transparentes sobre os efeitos do novo coronavírus junto a essa população em todo o país. Em tempos de pandemia, nos quais as principais recomendações apontam para o necessário distanciamento social, higienização das mãos, uso de máscaras e, se possível, permanência em suas residências, como a população em situação de rua poderá se proteger e evitar a contaminação nas ruas das cidades?


Estarão novamente largados à própria sorte ou à morte, em Belo Horizonte, por exemplo, as mais de 9.000 pessoas em situação de rua cadastradas no CADÚnico na cidade, a maioria de vidas negras, que o Executivo Municipal insiste em reduzir pela metade, com a apresentação de dados incompletos relativos a essa população?


Qual o Plano de Contingência específico desenvolvido por esse Executivo Municipal para o enfrentamento da pandemia e a garantia de direitos dessa população? Qual o cronograma de vacinação estabelecido pela Secretaria Municipal de Saúde com as pessoas em situação de rua? Em tempos ainda tão escassos de vacinas e insumos para a produção das mesmas no Brasil, deveríamos investir no fortalecimento de políticas de informação e produção de dados para o enfrentamento da pandemia da COVID-19.



[1] De acordo com o site da Caixa Econômica Federal: “O Cadastro Único é um conjunto de informações sobre as famílias brasileiras em situação de pobreza e extrema pobreza. Essas informações são utilizadas pelo Governo Federal, pelos Estados e pelos municípios para implementação de políticas públicas capazes de promover a melhoria da vida dessas famílias.” Link de acesso à informação: Cadastro Único - Cadastros Sociais | Caixa


[2] Livro Genocídio do Negro Brasileiro, de Abdias Nascimento, reimpresso pela Editora Perspectiva, São Paulo, 2017.

[3] Para o aprofundamento sobre o conceito de Necropolítica, sugiro a leitura do livro de Achille Mbembe, Políticas de Inimizade, com a tradução publicada em 2017, pela Editora Antígona, de Lisboa, Portugal.


[4] Para mais informações, segue o link sobre a matéria publicada no Jornal o Estado de São Paulo, em 19 de dezembro de 1890 - http://m.acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,a-destruicao-dos-documentos-sobre-a-escravidao-,11840,0.htm


[5] Na última semana, no dia 12/02/2021, uma matéria muito interessante foi publicada sobre o assunto na revista Piauí. Acesso pelo link: Passado escravista que o mar não levou (uol.com.br)


[6] Para fins de introdução sobre as relações entre Racismo e desigualdades no Brasil, sugiro os livros de Gevanilda Santos (Relações Raciais e Desigualdade no Brasil (São Paulo: Selo Negro, 2009), de Sueli Carneiro (Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil, São Paulo: Selo Negro, 2011

[7] Livro Racismo Estrutural, de Silvio Luiz de Almeida, publicado em 2019, São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen; coleção Feminismo Plurais, coordenado por Djamila Ribeiro.


André Luiz Freitas Dias

Professor, pesquisador-extensionista e membro da Coordenação do Programa Polos de Cidadania da UFMG

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